Friday, November 03, 2006

Virou a esquerda,

nem sabe bem porquê. Mas virou. A luz nem estava particularmente bonita naquele lado, não era brilhante nem fazia resplandecer absolutamente nada. Podia, mas não fazia. Os passos logo deixaram de ecoar, o ribombar da sola no cimento já não tinha paredes nuas de onde se relancar em saltos mais efusivos. As cortinas vermelhas pesadas que contornavam as paredes descaíam dos carris algures lá muito no alto, mas ainda assim abafavam qualquer som que pudesse emitir. Ninguém ouviu o seu grito, portanto. Tambem não gritou. Não havia qualquer necessidade disso. A canção era-lhe já conhecida - um fado como qualquer outro que teima em se pendurar do ouvido como um cabelo teima em se agarrar à camisa. Virou à esquerda como quem sai de um corredor qualquer. Olhou em frente como quem já nada via. E não viu. Não havia nada lá, o espaço fora completamente esvaziado. E isso era estranho, embora ela não o pudesse ver. Mas o vazio sente-se, porque damos sempre pela falta de alguém que apesar de tudo não se encontra ali connosco. A presença era outra. Era o nada que a conduzia para parte alguma. Era a visão de quem cegou há muito. De quem nunca chegou mas partiu há demasiado tempo. O problema da demora é que a memória nem sempre consegue reter todos os passos que damos até à porta de casa, quantos degraus subimos ao certo, quantas vezes rodamos a chave para descobrir que nos esvaziaram a cabeça, nos levaram tudo aquilo que nos lembrava quem éramos, o que fomos, que fizemos, quem nos viu fazê-lo. Deixou as chaves cair no chão. Nem mesa lhe tinham deixado para as poisar na entrada. Nem cadeira para sentar o desespero. Ladeou a cabeça que já fechara os olhos descrentes por detrás de uma ilusão que reinventava o que lhe havia pertencido, o que lhe havia sentido. Virou à esquerda porque mais nada tinha sentido.

Wednesday, November 01, 2006

corante de maçã

e frescura matinal sempre ajudaram a começar o dia, por mais chuvoso que fosse. no entanto, naquela nuvem daquela manhã o dia não se mostrava nada matinal na sua escuridão, embora a frescura lá estivesse. de soslaio, olhando. demasiado presente.
Tentei segurar-me às forças que todas as manhãs galãmente conferem, num eloquente toque de malícia, a quem se propõe massacrá-las com demasiado frenesim de chávenas irrequietas e torradas de pão esmifrado entre dedos engordurados. Geleia na mesa.
Migalhas no chão. sorrisos falsos entre quem não se quer ver e não quer ser isto. esta coisa pegajosa que nem sabe falar. palavras não brotam detrás de grades de sono epiléptico. e o desmaio não é salvação para ninguém, muito menos o suspiro. percorrem-se ruas desnudas. discursam-se caminhos perdidos. o nevoeiro nunca é denso o suficiente para esconder os arranhões da noite. nem as feridas do dia. marcados no chão ainda estão frescos os passos das putas, os assobios dos cães ainda se colam às paredes.
Não escorrem porque têm horror às sarjetas que escoam águas alheias, babas e olheiras das noites que outros não deixaram dormir. já niguém se lembra da última vez que dormiu. uma noite seguida de sussurros em vielas, de aconchegos brutos, de mordidelas ao ouvido, de trapos presos em pregos, rasgados no meio do suor.
Roçam as carroçarias dos taxis madrugadores com os chassis dos que acabam a carreira. os bigodes trocam saudações, tropeções no escuro de uma luz que teima em perguiçar. esse candeeiro nunca acendeu.